31.3.07

O tempo e a eternidade

Trabalhar é cooperar com Deus para colocar ordem no caos. Na verdade, qualquer boa ação é um gesto solidário ao coração de Deus, que sempre desejou que esse mundo fosse um jardim. Dizem que quem não faz parte da solução, faz parte do problema, e, nesse caso, todo cristão deve agir como parte da solução para que o caos social, político, econômico, ético e ecológico seja revertido o máximo possível. Existe uma lógica para isso. Aliás, uma lógica que nem todo cristão alcança.

Por exemplo, quem acredita que haverá um dia quando Jesus substituirá esse mundo por um novo e uma nova terra, não tem muita razão para trabalhar para que este mundo seja melhorado e transformado. Por que gastar tempo, recursos e dedicar a vida a manter e aperfeiçoar algo que vai acabar? Talvez, no mínimo para evitar que o caos inviabilize nossa vida nesse mundo ou acabe batendo à nossa porta: até quem pensa que esse mundo vai acabar mesmo não deseja ficar sem água, ter um filho vítima da violência urbana ou ser usurpado por um governo corrupto. Talvez para anunciar que o reino de Deus virá em breve, e que é bom que as pessoas comecem a se preparar para viver nele, que, aliás, já dá os seus sinais. De fato, cuidar do mundo enquanto vivemos nele e promover sinais históricos do reino de Deus na história são duas excelentes razões para que todo cristão se comprometa a cooperar com Deus para colocar ordem no caos.

Mas, consideremos uma terceira razão. E se o novo céu e a nova terra não forem "outro mundo", mas esse mundo, levado, por Deus, à sua plenitude? E se nosso trabalho e boas ações repercutirem na eternidade como matéria prima que Deus usa para a transformação desse mundo em novo céu e nova terra? Você já imaginou a possibilidade de que, assim como você vive para sempre, seu trabalho e suas boas obras também subsistam por toda a eternidade, e que os sinais históricos do reino de Deus não cairão no vazio do nada, mas continuarão testemunhando a graça e a glória de Deus para todo o sempre?

Jesus disse que as pessoas abençoadas por nós na história nos receberão na eternidade. Paulo, apóstolo, disse que no juízo final Deus colocaria fogo na casa que construímos na história e preservaria apenas o que fosse ouro, prata e pedras preciosas. João, apóstolo, disse que a Nova Jerusalém desce do céu: desce para onde? O "fim do mundo" no Novo Testamento é mais parecido com uma mudança de tempo ou era (este século e o vindouro) do que uma mudança de endereço ou lugar. Os rabinos acreditam que "as boas ações dos homens são as sementes que Deus usa para plantar as árvores do paraíso". É possível que não estejam muito longe de ter razão.

27.3.07

Jugo suave

Os rabinos são intérpretes da Lei. Sua ocupação é discernir como viver a vontade de Deus expressa na Lei. Por esta razão têm autoridade para proibir e permitir, dizer o que pode e deve ser feito para que a Lei seja cumprida e que não pode e não deve ser feito para que a Lei seja abolida. O conjunto de permissões e proibições de um rabino consistia no “jugo do rabino”. Todo rabino tem um jugo, que seus discípulos assumem como a melhor maneira de cumprir a Lei. Todo rabino ensina sob o jugo de outro rabino. Até que apareça algum rabino que afirme ter seu próprio jugo, independentemente do jugo dos rabinos mais antigos. Para ganhar autoridade de ter seu próprio jugo, o novo rabino deve ser autorizado por pelo menos dois rabinos reconhecidos pela comunidade de rabinos. Quando um novo rabino ganha autorização para ter seu próprio jugo, é dito que ele ganhou as chaves do reino, e agora está apto para permitir e proibir, isto é, dizer o que deve e o que não deve, o que pode e o que não pode ser feito por quem deseja cumprir a Lei.

Jesus entrou em cena sob o testemunho de João Batista, e sobre ele se materializou o Espírito Santo na forma corpórea de uma pomba, seguida da voz dos céus: “Este é meu Filho amado, ouçam o que ele diz”. Dessa maneira, Jesus recebeu autorização de duas fontes de autoridade para ter seu próprio jugo, isto é, recebeu as chaves do reino, e desde então passou a ensinar dizendo: “Ouvistes o que foi dito, eu, porém, vos digo”. Convidava pessoas para que se submetessem ao seu conjunto de permissões e proibições dizendo: “Meu jugo é suave e meu fardo é leve”. Ao final de seu ministério terreno disse a Pedro, que representava a igreja, a comunidade dos discípulos de Jesus: “Dou a vocês as chaves do reino”, e assim transferiu à sua igreja a autoridade para ligar e desligar, proibir e permitir.

Os apóstolos compreenderam isso e utilizaram essa prerrogativa em Atos 15, quando decidiram aliviar o jugo que pesava sobre os ombros dos novos cristãos, decidindo que estavam livres de cumprir a Lei de Moisés, devendo observar apenas três ou quatro regras. Em 1Coríntios 7 o apóstolo Paulo também usou “as chaves do reino” para legislar a respeito do divórcio. No tempo de Jesus os rabinos que seguiam Hilel acreditavam que se podia divorciar por qualquer motivo, enquanto os discípulos de Shamai admitiam o divórcio somente em caso de imoralidade sexual. Jesus concordou com Shamai. Mas o apóstolo Paulo acrescentou mais um motivo legítimo para o divórcio: o abandono pelo descrente por motivo da fé de seu cônjuge convertido.

As comunidades cristãs têm nas mãos as “chaves do reino”, isto é, têm o direito e o dever de avaliar o jugo que se deve impor aos discípulos cristãos em cada contexto sócio-cultural aonde chega o evangelho. Toda comunidade cristã deve ter a coragem de afirmar “pareceu bem a nós e ao Espírito Santo não lhes impor nada além das seguintes exigências...”. Tanto o moralismo legalista quanto a permissividade libertina causam mal às pessoas que pretendem viver de modo digno do Evangelho de Jesus Cristo.
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Para aprofundar sua reflexão, recomendo: Bell, Rob. Velvet Elvis. Zondervan.

26.3.07

Aos habitantes da cidade

Como podemos reagir à explosão de violência e terror que invadiram nossas cidades e nossas vidas nos últimos tempos? O que podemos fazer para não perdermos a alegria de viver, não nos alienarmos e não nos deixarmos dominar pelo medo e a insegurança? Podemos ouvir palavra de Deus:

"Assim diz o Senhor dos Exércitos, o Deus de Israel, a todos os exilados, que deportei de Jerusalém para a Babilônia: 'Construam casas e habitem nelas; plantem jardins e comam de seus frutos. Casem-se e tenham filhos e filhas; escolham mulheres para casar-se com seus filhos e dêem as suas filhas em casamento, para que também tenham filhos e filhas. Multipliquem-se e não diminuam. Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela'." (Jeremias 29.4-7)

"A justiça habitará no deserto, e a retidão viverá no campo fértil. O fruto da justiça será paz; o resultado da justiça será tranqüilidade e confiança para sempre. O meu povo viverá em locais pacíficos, em casas seguras, em tranqüilos lugares de descanso, mesmo que a saraiva arrase a floresta e a cidade seja nivelada ao pó. Como vocês serão felizes, semeando perto das águas, e deixando soltos os bois e os jumentos!" (Isaías 32.16-20)

Devemos lembrar que a cidade não é o lugar do nosso descanso, é nosso exílio. A monstruosa cidade, com suas relações humanas conflituosas, suas estruturas de poder carcomidas pela ganância e pela indiferença ao sofrimento alheio, suas redes criminosas de poder, seus justos acuados e seus valentes agredidos e mortos, não é outro lugar senão o ambiente do exílio, onde não nos sentimos em casa nem mesmo no conforto do lar.

Devemos nos alimentar da esperança: a justiça triunfará e a paz nascerá como o sol do meio-dia. Nascerá o sol da justiça trazendo tranqüilidade e confiança para sempre. Os que confiam em Deus habitarão lugares pacíficos, casas seguras e tranqüilos lugares de descanso, apesar da guerra, da peste, da morte e da fome.

Devemos resistir até a última gota de sangue e de lágrima. Resistir com amor, trabalho, diversão e arte. Continuaremos a viver romances, fazer amor e gerar filhos. Construiremos casas, plantaremos pomares e desafiaremos a morte nos lambuzando nos frutos do nosso trabalho. Cultivaremos jardins no meio do caos e encheremos o vale da sombra da morte com nossas flores.

Resistiremos com família e oração. Andaremos de mãos dadas com nossos filhos, nossos amigos, nossos irmãos. Ergueremos as mãos aos céus em oração e súplica pela cidade. Empreenderemos para a prosperidade da cidade e prosperaremos com ela. Continuaremos caminhando, cantando e servindo. Até chegar aquele dia, quando todas as vítimas serão acolhidas no reino de Deus e a terra se encherá do conhecimento da glória do Senhor como as águas cobrem o mar. No céu haverá festa sem fim. E o inferno ficará em silêncio.

15.3.07

Tudo ter, nada possuir

Paradoxo é uma figura de linguagem que apresenta uma aparente contradição, como por exemplo a famosa expressão “é dando que se recebe” ou a advertência de Jesus afirmando que “ganha a vida quem a perde por amor a ele”.

Reino de Deus é um conceito do cristianismo, semelhante a reino dos céus, e até mesmo céu. O reino de Deus pode ser o ambiente onde a vontade de Deus é feita na terra como no céu, ou também uma qualidade de relacionamento com Deus, onde aquele que participa do reino de Deus não vive mais para si mesmo mas para o próprio Deus, e, finalmente, o status de uma realidade, isto é, o reino de Deus está onde as coisas são exatamente do jeito como Deus quer que sejam.

Experimentar ou participar do reino de Deus, portanto, é viver para Deus e sob o cuidado de Deus, promovendo a vontade de Deus em todos os ambientes de nossa influência, de modo que a realidade vá se tornando cada vez mais como Deus quer que ela seja, até que toda a terra se encha do conhecimento da glória de Deus como as águas cobrem o mar.

Os paradoxos do reino de Deus são que quando passamos a viver para Deus, abrimos mão de tudo quanto temos e somos, e, em vez de ficarmos com nada, ficamos com tudo, pois quem está sob o cuidado de Deus, de nada tem falta, de modo que temos tudo, mas vivemos como se nada tivéssemos, pois quem vive para Deus não está apegado a nada, senão ao próprio Deus.

O discipulado de Jesus Cristo implica ter tudo em Deus, mas viver como se nada tivesse, desapegado de tudo, olhando para tudo que é seu como se seu não fosse, colocando tudo o que tem a serviço dos interesses de Deus, para que em todas as coisas a vontade de Deus prevaleça e o mundo se encaixe nos propósitos de Deus. Assim viviam os cristãos do primeiro século: “da multidão dos que creram, uma era a mente e um o coração. Ninguém considerava unicamente sua coisa alguma que possuísse, mas compartilhavam tudo o que tinham”; “os que criam mantinham-se unidos e tinham tudo em comum... vendendo suas propriedades e bens, distribuíam a cada um conforme a sua necessidade”; “quem tinha recolhido muito não teve demais, e não faltou a quem tinha recolhido pouco”.

O discipulado de Jesus Cristo implica nada ter, mas viver como se tudo tivesse, andando em segurança, pois aquele que tem a Deus, de que mais necessita? Assim ensinam as Sagradas Escrituras: “O Senhor é o meu pastor; de nada terei falta”; “Deleite-se no Senhor, e ele atenderá aos desejos do seu coração. Entregue o seu caminho ao Senhor; confie nele, e ele agirá: ele deixará claro como a alvorada que você é justo, e como o sol do meio-dia que você é inocente. Descanse no Senhor e aguarde por ele com paciência; não se aborreça com o sucesso dos outros”; “Desde os tempos antigos ninguém ouviu, nenhum ouvido percebeu, e olho nenhum viu outro Deus, além de ti, que trabalha para aqueles que nele esperam”; “Não se preocupem com sua própria vida, quanto ao que comer ou beber; nem com seu próprio corpo, quanto ao que vestir. Observem as aves do céu, o Pai celestial as alimenta. Não têm vocês muito mais valor do que elas?”; “... Deus suprirá todas as necessidades de vocês, de acordo com as suas gloriosas riquezas em Cristo Jesus”.

2.3.07

As vontades de Deus

A vontade de Deus é um dos temas mais controversos da experiência cristã. Os teólogos costumam dizer que Deus tem três tipos de vontades: soberana, moral e específica. A vontade soberana é aquela que se realiza independentemente da concordância ou cooperação humana voluntária. Quando Deus quer agir, ninguém pode impedir: porta que Deus abre ninguém fecha e porta que Deus fecha ninguém abre. Considerando que Deus tem todo poder, isso significa não apenas que Ele pode decidir livremente (direito) como também que pode executar sua decisão (capacidade).

A vontade moral é aquela que reflete o caráter de Deus, em forma de mandamentos ou princípios. Não matar, não roubar, não mentir são bons exemplos. Mas também ser solidário, praticar a misericórdia, promover a justiça, agir com humildade, cultivar relacionamentos íntegros, honrar as promessas e não manipular pessoas também se encaixam na definição.

A vontade específica seria aquela que determina o plano detalhado de Deus para cada circunstância da vida de cada pessoa em particular, como por exemplo, o lugar onde vai estudar, a pessoa com quem vai casar, o emprego e a cidade onde vai morar. Por trás do conceito da vontade específica de Deus está a crença de que tudo o que acontece, desde que não seja um pecado cometido pela própria pessoa, é da vontade de Deus, pois Ele tem um propósito por trás de todas as situações da vida de todas e cada uma das pessoas. Quando alguém fica doente, é preterido para uma promoção ou é demitido do emprego, tem um carro roubado, uma viagem adiada ou uma visita inesperada, tudo foi causado ou permitido por Deus porque Ele quer fazer alguma coisa através daquele evento ou naquela situação específica. Além disso, também há a crença que Deus tem a decisão certa a ser tomada em cada circunstância da vida. A vontade específica, entretanto, mais se parece com a perspectiva pagã do determinismo e do fatalismo, a crença no destino, do que com a abordagem bíblica de um deus que cria seres humanos à sua imagem e semelhança, e portanto livres, e os convoca a que se tornem parceiros na administração da criação e na construção da história. Os cristãos não cremos em destino. Os cristãos acreditamos que Deus tem propósitos para a história humana, mas não tem tudo decidido, como se a humanidade fosse um conjunto de bonecos iludidos, acreditando que são responsáveis por suas histórias, mas na verdade são manipulados pelos dedos de Deus que determinam suas decisões.

É fato que Deus está presente e agindo em todas as situações da vida de todas as pessoas, e que nada acontece sem que Deus permita. Mas isso não significa que Deus é a causa de tudo o que acontece. Permitir é diferente de fazer acontecer. Também é verdade que Deus guia e orienta aqueles que buscam sua sabedoria. Mas isso é diferente de apontar a escolha certa, como se fosse um oráculo. Deus responde orações. Mas não manipula ninguém. Exceto quando livremente decide realizar seus propósitos. Mas aí já não se trata de vontade específica, mas soberana.


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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