11.4.07

Dos mistérios de ser Deus e homem

A cristologia de Bento XVI, platônica, parte de Deus e chega em Cristo.
A de Sobrino, aristotélica, faz o caminho inverso. Eis o choque.

Por Fernando Altemeyer Junior

Há (dez dias) publicou-se a nota condenatória: “O padre Jon Sobrino tende a diminuir o valor normativo das afirmações do Novo Testamento e dos grandes Concílios da Igreja antiga. Tais erros de índole metodológica levam a conclusões não conformes com a fé da Igreja em pontos centrais da mesma: a divindade de Jesus Cristo, a encarnação do Filho de Deus, a relação de Jesus com o Reino de Deus, a sua auto-consciência, o valor salvífico da sua morte.” Notificação da Congregação da Doutrina da Fé, Vaticano, 14 de março de 2007.

Quais as razões para este gesto? Quais as razões para a condenação da obra de um teólogo tão requintado e fecundo? Terá ele diminuído o valor da mensagem evangélica e errado em seu método? Terá negado a divindade de Jesus? Terá silenciado sobre a salvação trazida por Cristo? O que diz Jon Sobrino em seus textos e o que afirma a teologia latino-americana em sua obra intelectual?

Outros tantos teólogos foram condenados nos últimos 32 anos: Hans Kung em 1975 e 1980; Jacques Pohier em 1979; Edward Schillebeeckx em 1980, 1984 e 1986; Leonardo Boff em 1985; Charles Curran em 1986; Tissa Balasuriya em 1997; Anthony de Mello em 1998; Reinhard Messner no ano 2000; Jacques Dupuis e Marciano Vidal em 2001; Roger Haight em 2004 e Jon Sobrino em março de 2007. Há algo de comum entre eles? Há razões para explicar esses conflitos dogmáticos?

Apresento aqui um quadro comparativo das teologias produzidas na América Latina e na Europa, para entender o que aconteceu com o padre jesuíta Jon Sobrino. Na América Latina, a formulação da fé é direta. Na Europa, é reflexa. Na América Latina, o ponto de partida é o rosto de Cristo transfigurado nos pobres. Na Europa, o ponto crucial é a transfiguração do Cristo na filosofia e no pensamento clássico. Na teologia latino-americana a preocupação é prática. Na Europa, é lógica. Na América Latina vemos o povo crucificado como cruz divina. Os pobres são cruciais. Na Europa fala-se do Deus crucificado como cruz humana. A Igreja é crucial. Na América Latina, a consciência histórica é um critério de seguimento de Jesus. Crer é seguir Jesus. Na Europa, o caminho de Jesus é objeto de investigação e critério para discernir entre o crer e o não crer. Crer é entender Jesus. Na América Latina, a pregação de Jesus sobre o Reinado de Deus é um contexto vital e mediação concreta para conhecer ao Deus vivo e verdadeiro. O Reino revela o amor e a verdade. Na Europa, a proclamação da verdade é a fonte segura do fazer teologia. A verdade revela o amor e o Reino.

A Cristologia latino-americana (em particular na obra de Jon Sobrino) se faz a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo. A Cristologia européia se faz a partir do conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente. A Cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do histórico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos. Já a Cristologia européia vem de cima para baixo. Do ser de Deus ao Cristo da fé. Do Cristo ao Jesus Ressuscitado. Do Ressuscitado ao crucificado. É alinhada aos pensadores alexandrinos, particularmente ao grande doutor Atanásio.

A Cristologia latino-americana participa da esperança libertadora dos povos crucificados. É uma Cristologia ascendente, inspirada em textos clássicos dos aristotélicos e tomistas. Jon Sobrino faz parte da família espiritual que bebe desta fonte teologal. A Cristologia européia trabalha a encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma Cristologia descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e agostinianos. Os teólogos da Congregação da Doutrina da Fé têm bebido desta fonte espiritual.

A Igreja latino-americana construiu uma teologia que dialoga com o magistério local. E este magistério se exprimiu teologicamente em Medellin, Puebla e Santo Domingo, em documentos pastorais de serviço ao povo e ao Evangelho. O que foi escrito em Medellin, em 1968, foi uma profecia autêntica do povo de Deus. O que foi assumido em Puebla, em 1979, foi a opção do Evangelho pelos pobres e contra a pobreza. O que foi encarnado e inculturado em Santo Domingo, em 1992, foi chave interpretativa dos sinais dos tempos. A missão da Igreja não é restauradora. É anúncio feliz da vida em Cristo.

A teologia gestada em El Salvador, no Brasil, no Chile e em praticamente toda América hispânica e criola dialogou com o magistério local e universal. Assumiu colóquios fecundos com pastores como dom Luciano Pedro Mendes de Almeida e dom José Ivo Lorscheider. Foi sustentada por cardeais como Aloísio Lorscheider e Paulo Evaristo Arns, e por patriarcas da Igreja latino-americana que podem ser chamados de novos padres da Igreja: Jaime Francisco de Nevares, Alberto Pascual Devoto, Eduardo Francisco Pironio, Enrique Angel Angelelli (argentinos); Jorge Manrique Hurtado (boliviano); Avelar Brandão Vilela, Fernando Gomes dos Santos, Helder Pessoa Câmara, Romeu Alberti (brasileiros); Enrique Alvear, Manuel Larrain Errazuriz, Raul Silva Henríquez (chilenos); Gerardo Valencia Cano (colombiano); Oscar Arnulfo Romero (salvadorenho); Leônidas E. Proaño Villalba, Pablo Muñoz Vega (equatorianos); Juan Gerardi Conedera (guatemalteco); Marcelo Gerin (hondurenho); Bartolomé Carrasco Briseño, José Salazar López, José Alberto Llaguno Farias, Sergio Méndez Arceo (mexicanos); Marcos Gregório McGrath (panamenho); Ramón Bogarín Argaña (paraguaio); Juan Landázurri Rickett (peruano) e Carlos Parteli Kéller (uruguaio). Todos filhos do Vaticano II que retomaram a antiga patrística. Padres testemunhas como Oscar Romero e Enrique Angelelli. Mártires que semearam igrejas em todo o continente, como na expressão de Tertuliano. Vivem a teologia na doação de suas próprias vidas.

A segunda onda patrística dos apologistas que defenderam a fé face ao pensamento grego e ao império romano, também tem paralelo em bispos como Manuel Larrain e especialmente no indígena Leônidas Proaño. Apologistas das culturas indígenas e da fé verdadeira. Vivem a teologia na escuta dos clamores surdos de seus povos.

O sofrimento pessoal de Jon Sobrino pode ser um momento fecundo para que se descubra que a humanidade sacratíssima de Jesus é o caminho seguro para contentar a Deus, para alcançar grandes graças do Espírito Santo e, sobretudo, pode ser a porta segura para que Deus nos mostre seus grandes segredos. São Francisco mostra isso ao receber as chagas de Cristo. Santo Antônio de Pádua, ao apresentar em seu colo o menino Deus. São Bernardo e Catarina de Sena em seus poemas de amor à humanidade de Deus feito humano. E, enfim, a doutora Santa Teresa de Ávila, que em seu Livro da Vida, no capítulo 22, afirma categoricamente que o melhor caminho para a mais alta contemplação de Deus passa pela humanidade de Jesus.

*Fernando Altemeyer Junior, teólogo, doutor em Ciências Sociais e ouvidor da PUC de São Paulo.

9 Comments:

Blogger O Tempo Passa said...

Esta teologia, intelectual, profunda, complexa, quase incompreensível já me atraiu, há muito tempo. Esperava, com ela, conhecer melhor a mim e a Deus. Não aconteceu.
Tenho ficado na superficialedade das reflexões simples dos artistas e poetas, e de gente como vc, Brabo, Gondim, Lou. E tenho sido mais enriquecido.
Salvo engano

12:48 PM  
Blogger Rev. João d'Eça said...

Prezado pr. Ed René.

O texto é bom. Tenho certeza que o senhor o publicou porque é bom.

Porém, esse tipo de teologia-sociológica não preenche a quem busca satisfação em Deus, preenchimento do vazio da alma, é preciso muito mais, é preciso aprofundamento na doutrinas da graça. A mim não satisfaz.

Rev. João d'Eça
IPB.

10:54 AM  
Blogger Unknown said...

Preocupação com víuvas, orfãos, excluídos, oprimidos pela política e religião não é muito agradável, mesmo. Seria mais confortável ouvirmos, assim, uma teologiazinha da prosperidade, da alegria, etc

1:56 PM  
Blogger Exemplo AVERA said...

Este comentário foi removido pelo autor.

12:20 AM  
Blogger Exemplo AVERA said...

Deus encarnou e foi perfeito numa coisa da qual falhamos muito: o toque.
Ele tocava pessoas e se deixava ser tocado por elas. O significado da vida de Cristo era servir e ele quis nos ensinar isso através dos suas obras.
Nenhum humano foi mais humano que Jesus. A sua deidade pode ser comprovada nisso também.

Mas talvez seja melhor agente ficar só na doutrina e na teologia ao invés da prática.
Da menos trabalho né...

Um abraço

12:31 AM  
Blogger Unknown said...

Normalmente este tipo de "teologia-sociológica" não preenche o vazio de certas pessoas porque, na maioria das vezes, este vazio está em seus "bolsos".

11:49 AM  
Blogger Eduardo Zombini e.zombini@itelefonica.com.br said...

Na verdade, Sobrino, Boff e outros expoentes da teologia da libertação foram punidos por suas idéias que, de modo geral, reduziam Cristo a um mero libertador social. Isto é, alguém que se utiliza apenas da luta de classes para obter um resultado temporal, sem considerar a sua missão salvífica.

Óbvio que a teologia da libertação não aconteceu de uma hora para outra, mas foi responsável pela politização exagerada da Igreja nos anos 70 e 80, que tanto minaram a fé do povo e deram a impressão (errada) de um catolicismo mais para o mundano que para o sacro.

Particularmente considero a punição justa. É óbvio que Jesus se importava com os pobres e sofredores (e muito!), mas reduzí-lo a apenas isso significa deixar de lado sua divindade e a salvação que nos deu.

abs
Eduardo Zombini
e.zombini@itelefonica.com.br

5:19 PM  
Blogger Unknown said...

Russell Shedd diz que "a razão bíblica para e eliminação da desigualdade social encontram-se na origem e destino potencial do homem, assim como no amor universal de Deus pelo mundo." Além disso, as facetas da adoração bíblica não são só expressas através da Kerigma, da Charis, da Eucaristia, mas também do aspecto libertador.
livros: "A Justiça Social e a interpretação da Bíblia" e " Adoração Bíblica".

1:53 PM  
Blogger julio cesar genuino da silva lima said...

Olá,pastor Ed rené kivtiz,a ultima vez,que ouvi sua mensagem foi no Recife;igreja episcopal carismática(Paulo Garcia).Estou sempre lendo seus pensamentos;Deus te dê mais,graça e sabedoria.
Quando,estará de novo no recife.
engenhodaalma.blogspot.com

10:25 AM  

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Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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    David Bosch
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