19.9.07

VERGONHA

Por Rui Barbosa, escrito em 1914

A FALTA DE JUSTIÇA, Srs. Senadores, é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação.A sua grande vergonha diante do estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais.

A injustiça, Senhores, desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vêm nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas.

De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.

Essa foi a obra da República nos últimos anos. No outro regime (na Monarquia), o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para todo o sempre, as carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos se temiam e que, acesa no alto (o Imperador, graças principalmente a deter o Poder Moderador), guardava a redondeza, como um farol que não se apaga, em proveito da honra, da justiça e da moralidade.

14.9.07

ATIRE A PRIMEIRA PEDRA

Quem estiver sem pecado, que atire a primeira pedra... Lembrei desta frase ao saber da absolvição do senador Renan Calheiros na última quarta-feira. Atolado num mar de acusações que vão desde envolvimentos com lobistas de empreiteiras, desvios de verbas públicas, crescimento vertiginoso e mal explicado do patrimônio pessoal, fraudes fiscais e contábeis, mentiras ao fisco e à Polícia Federal, utilização de “laranjas” para esconder negociatas ilícitas, abuso de autoridade e poder, enfim uma lista inconcebível para qualquer cidadão, mais ainda ao presidente do Senado, a casa maior do poder legislativo da República, não há outra explicação para que tenha sido evitada sua cassação senão a máxima estabelecida por Jesus: o Senado é uma casa onde macacos não criticam o rabo dos outros porque têm vergonha dos seus próprios rabos.

O senador Renan Calheiros sabe demais. Sabe dos pecados e crimes de tantos outros senadores, sabe dos expedientes dos que se locupletam no exercício do poder: compra de votos, beneficiamento de empresas, manipulação de verbas orçamentárias, recebimento de doações para “fundos de campanha”, comércio de concessões de veículos de mídia, sistemas de corrupção, loteamentos de estatais, “caixas dois”, os “por fora” das privatizações, além das escapadelas hedonistas dos engravatados da corte. Fosse escrever na areia, o senador Renan Calheiros encheria o chão com um triller de romances ilícitos, negócios espúrios, crimes grotescos, expondo a podridão dos bastidores do poder que nada mais são do que reflexo e expressão dos lixos guardados nom porão da alma humana conquistada pela diabólica trindade dinheiro, sexo e poder.

Não me admira que os senadores tenham escolhido a escuridão de uma seção secreta com o manto para uma votação secreta não menos tenebrosa: “as pessoas preferem a escuridão porque fazem o que é mau. Os que fazem o mal odeiam a luz e fogem dela para que ninguém veja as coisas más que fazem”, diz a Bíblia Sagrada (João 3.19,20 – BLH). Escondidos nas trevas, os homens maus são incapazes de promover processos de justiça, primeiro porque não têm autoridade moral para executá-los, mas também e principalmente porque temem a exposição de sua própria impiedade, vivem aterrorizados pela possibilidade de que sua vergonha seja exibida pelas esquinas, vire manchete de jornais, capas de periódicos, corpos nus em revistas de fetiche.

Ao denunciar o pecado dos impiedosos apedrejadores Jesus pretendia convocar todos à dignidade humanizadora, fraterna, conciliadora, mostrando que a culpa e a vergonha não são purgadas pelo achincalho, o enxovalho e a pena capital em praça pública, mas pela outorga mútua da compaixão e da misericórdia, própria dos que enxergam as sombras de suas próprias almas e estendem a mão e se irmanam na súplica para sejam guiados ao caminho da luz.

A proposta cristã da recusa ao apedrejamento não é uma licença para a manutenção de um sistema imundo perpetuado por almas sujas. A proposta cristã para que ninguém atire a primeira pedra é a afirmação de que ninguém precisa temer vir para a luz: a confissão a Deus não implica colocar a cabeça na guilhotina, mas o abrir do coração para que o poder de Deus anule a força da maldade, o perdão de Deus anule poder da culpa e da vergonha, e o amor de Deus se derrame sobre todos, para que se tornem desnecessários os bodes expiatórios e os processos vitimários. Jesus pretendia que os homens soltassem as pedras para que tivessem as mãos livres para receber perdão e amor, e pudessem se abraçar em justa e fraterna comunhão. Os senadores brasileiros que soltaram as pedras o fizeram por outras razões: ficaram com as mãos livres para agarrar as pontas do manto da escuridão a fim de que pudessem permanecer escondidos nas trevas e continuassem a fazer o mal.

4.9.07

Eu também não te condeno

Pode procurar que você não vai achar. Não importa aonde vá, estou absolutamente convencido de que há duas coisas que você nunca vai achar. Você pode correr o mundo e o tempo, e tenho certeza que jamais conseguirá achar alguém que não se envergonhe de algo em seu passado. Para qualquer lugar que você vá, lá estarão elas, as pessoas que gostariam de apagar um momento, uma fase, um ato, uma palavra, um mínimo pensamento. Todo mundo tenta disfarçar, e certamente há aqueles que conseguem viver longos períodos sem o tormento da lembrança. Mas mesmo estes, quando menos esperam são assombrados pela memória de um ato de covardia, um gesto de pura maldade, um desejo mórbido, um abuso calculado, enfim, algo que jamais deveriam ter feito, e que na verdade, gostariam de banir de suas histórias ou, pelo menos, de suas recordações.

Isso é uma péssima notícia para a humanidade, mas uma ótima notícia para você: você não está sozinho, você não está sozinha. Inclusive as pessoas que olham em sua direção com aquela empáfia moral e sugerem cinicamente que você é um ser humano de segunda ou terceira categoria, carregam uma página borrada em sua biografia, grampeada pela sua arrogância e selada pelo medo do escândalo, da rejeição e da condenação no tribunal onde a justiça jamais é vencida. Você não está sozinho. Você não está sozinha. Não importa o que tenha feito ou deixado de fazer, e do que se arrependa no seu passado, saiba que isso faz de você uma pessoa igual a todas as outras: a condição humana implica a necessidade da vergonha.

A segunda coisa que você nunca vai encontrar é um pecado original. Não tenha dúvidas, o mal que você fez ou deixou de fazer está presente em milhares e milhares de sagas pessoais. Não existe algo que você tenha feito ou deixado de fazer que faça de você uma pessoa singular no banco dos réus – ao seu lado estão incontáveis réus respondendo pelo mesmíssimo crime. Talvez você diga, “é verdade, todos têm do que se envergonhar, mas o que eu fiz não se compara ao que qualquer outra pessoa possa ter feito”. Engano seu. O que você fez ou deixou de fazer não apenas se compara, como também é replicado com absoluta exatidão na experiência de milhares e milhares de outras pessoas. Isso significa que você jamais está sozinho, jamais está sozinha, na fila da confissão.

Talvez por estas razões, a Bíblia Sagrada diz que devemos confessar nossas culpas uns aos outros: os humanos não nos irmanamos nas virtudes, mas na vergonha. Este é o caminho de saída do labirinto da culpa e da condenação: quando todos sussurrarmos uns aos outros “eu não te condeno”, ouviremos a sentença do Justo Juiz: “ninguém te condenou? Eu também não te condeno”.

É isso, ou o jogo bruto de sermos julgados com a medida com que julgamos. A justiça do único justo reveste os que têm do que se envergonhar quando os que têm do que se envergonhar desistem de ser justos.


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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