28.11.06

Deus coopera

Meu amigo Ariovaldo Ramos diz que a Bíblia é um texto zipado. É como um arquivo que se abre para a eternidade e você nunca chega ao fim de sua leitura. Não importa se vai ao mesmo texto repetidas vezes, ele sempre dirá algo novo, pois o texto em si não é absoluto, mas portador da vida do Deus eterno que se coloca dentro dele – inspiração.

A Bíblia é também um texto polissêmico – com diversos sentidos (sem contradição interna ou performática), isto é, pode ser lido por diferentes pessoas, em variadas circunstâncias, períodos da história e culturas, em diálogo com as diversas ciências, e dele brotará sempre uma nova perspectiva, um novo ângulo de iluminação da realidade e das consciências, do tempo e dos fatos.

Também creio que a Bíblia é um texto vivo, isto é, transcende a realidade estática codificada em dogma e moral, e visita a interioridade humana, e se estabelece com um terceiro dançarino no bailado do diálogo entre o divino e o humano. A Bíblia não é um livro de doutrinas, princípios ou mandamentos atestados e congelados após sujeição ao método científico.

Isso sem falar no fato de que a Bíblia é um livro cujos escritos originais estão perdidos no tempo, e tudo quanto temos em mãos são cópias de cópias, algumas mais fidedignas do que outras, e com algumas controvérsias para sua tradução, que em si mesma é revestida de conflitos e senões.

Por esta razão, há sempre mais de uma possível leitura de um texto. Qualquer pessoas que se proponha a afirmar categoricamente o que a Bíblia diz, padece de falta de informação ou é desonesto intelectualmente. O máximo que um leitor da Bíblia pode afirmar é “em consenso com a comunidade da fé, atual e histórica, e à luz de minha capacitação, experiência e maturidade, o que consegui ler neste texto da Bíblia é o seguinte...”.

Um bom exemplo disso tudo é a tradução de Romanos 8.28-30:

"Sabemos que Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito".

A Nova Versão Internacional traz em sua nota de rodapé uma outra possibilidade de tradução para o verso 8.28, em minha opinião, muito melhor e mais coerente do que esta mais tradicionalmente aceita.

"Sabemos que em todas as coisas Deus coopera juntamente com aqueles que o amam, dos que foram chamados de acordo com o seu propósito, para trazer à existência o que é bom".

Na primeira tradução: “Deus age em todas as coisas para o bem daqueles que o amam”, Deus é um manipulador de circunstâncias e seus filhos são passivos, completamente sujeitos ao soprar dos ventos da vida e dependentes do Jesus que segura o leme. Isto significa que você descansar sempre, sabendo que tudo o que lhe acontece estava determinado por Deus, que está usando todas as situações da sua vida para o seu bem, ainda que você não saiba como e porque, como naquela velha história do tapeceiro que corta os fios no avesso da tela, para ao final mostrar um belo quadro, com fios longos e lisos, outros retorcidos e outros ainda cortados rente.

Mas na segunda tradução: "Em todas as coisas Deus coopera juntamente com aqueles que o amam para trazer à existência o que é bom”, Deus não é um manipulador de circunstâncias, mas um parceiro presente em toda e qualquer situação da vida. Nesse caso, você pode acreditar que não foi Ele quem meteu você no fogo ou deixou que as águas viessem sobre você, quem fez com que a tempestade ameaçasse seu barco, ou mesmo quem colocou você bem no meio do vale da sombra da morte. Nem todas as circunstâncias de sua vida tiverem origem em Deus. Ele não é a causa de tudo o que acontece com você. Mas é certo que nenhuma das circunstâncias de sua vida escapa aos olhos de Deus, e sempre que for invocado Deus terá o que fazer para trazer à existência o que é bom. O que Deus faz, entretanto, não é necessariamente uma manipulação da situação (se bem que às vezes ele o faz), mas sempre e sempre, coopera com você, soprando sobre você o seu Espírito Santo, para que você seja capaz de enfrentar a vida, qualquer que seja ela, de modo a glorificar o nome de Jesus e sinalizar o reino de Deus na história. Deus está atento, com os olhos fixos em você, não necessariamente como causa de tudo o que acontece ao seu redor, mas certamente para mostrar-se forte com todos aqueles cujos corações são completamente dEle, inclusive você, se for o caso.

Não há como ler a Bíblia senão em humilde contrição e de joelhos, pois a verdade não brota de suas páginas senão para aqueles a quem Deus se revelar. Toda vez que o humano se depara com a verdade na palavra viva de Deus, deve cair em gratidão, sabendo que “isto não lhe foi revelado por carne ou sangue, mas pelo Pai que está nos céus”. Seja Deus, portanto, o semeador de um dos Romanos 8.28-30 em seu coração.

24.11.06

Teodicéia

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não consegue, então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre a Tsunami que abalou a Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: “Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom”.

Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a idéia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir que Deus não existe.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando chegamos a um “problema insolúvel”, devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de pensamento que considera o binômio “onipotência/bondade” como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras “onipotência” e “bondade” são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus foi crucificado num “jogo de empurra” entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristão foi morto não por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência[i], isto é, abriu mão do exercício de sua onipotência, e por amor[ii], deixou-se matar por eles[iii]. (Eu disse que “Deus abriu mão do exercício de sua onipotência”, bem diferente de “Deus abriu mão de sua onipotência”).

O apóstolo Paulo admitia que não era possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou “Deus é amor”[iv]. Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência.

Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que “a contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade”. Também assim pensou o apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na morte de Jesus na cruz)[v], e nunca o poder de Deus.

Na verdade, “Deus não tinha escolha”. Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria criá-lo livre. Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada. Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor dá liberdade para que o outro seja livre, inclusive para rejeitar o amor que se lhe quer dar.

André Comte-Sponville é um ateu confesso (sei que vou levar pedradas) que discorre a respeito do amor divino como poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos de Simone Weil: “a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras” [vi].

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira. Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas entranhas movidas de compaixão[vii].

Mas você poderia perguntar por que razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal porque o mal não existe, o que existe é o malvado. O mal não é uma entidade ao lado de Deus. O mal é o resultado de uma ação humana em afastar-se do Deus, sumo bem. O monoteísmo cristão afirma que há um só Deus, e que o mal é a privação da presença de Deus. Os cristãos não somos dualistas que postulamos a existência do bem e do mal. O mal é apenas a ausência do bem. Por isso, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos me ensinou assim, e completou dizendo que “para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o malvado”. Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime, para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus “se diminui”, esvazia-se de sua onipotência, abre mão de se relacionar em termos de onipotência-obediência, e se relaciona com a humanidade com base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos[viii], e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens[ix].

É uma pena que Epicuro não tenha lido os apóstolos cristãos, não tenha corrido no parque ao lado de Ricardo Gondim, não tenha ouvido Ariovaldo Ramos pregar, e nem tenha assistido às aulas de Jung Mo Sung.

____________________
[i] Carta aos Filipenses 2.6-8
[ii] Evangelho de João 3.16
[iii] Atos dos Apóstolos 2.23
[iv] Primeira Carta de João 4.7
[v] 2Coríntios 5.14,15
[vi] Comte-Sponville, André, Pequeno tratado das grandes virtudes, São Paulo: Martins Fontes, 1995, Capítulo 18: Amor.
[vii] Evangelho de São Mateus 9.36; 14.14
[viii] Evangelho de São Mateus 5.44,45
[ix] Atos dos Apóstolos 14.17

Alma dividida

Pouca coisa é mais danosa do que a alma dividida: estar num lugar com a cabeça em outro; com uma pessoa, tendo outra a ocupar o afeto; num trabalho, desejando outra maneira de vencer os dias; numa família, invejando outra; numa estrada, ansiando outro destino; numa personagem, sabotando a real identidade do si mesmo.

17.11.06

Encarnação

Para chegar a Deus você precisa passar pelo homem. Para Deus chegar em você Ele também precisa passar pelo homem. Não existe contato direto com Deus, isto é, todo contato entre o humano e o divino é mediado por um outro humano. O humano é ponte entre o humano e o divino. O humano é ponte entre o divino e o humano. Toda vez que você pretender um contato imediato com Deus, deixando de lado a ponte humana, isto é, a horizontalidade que Ele mesmo providenciou, você vai cair num abismo sem fim, isto é, vai experimentar o vazio, aquele sentimento de estar falando com ninguém. É isto o que o Evangelho ensina quando afirma que “existe apenas um Mediador entre Deus e os homens: Cristo Jesus, homem”.

O menino e a raposinha

O menino tinha o dom especial de tratar com os bichos selvagens. Aliás, ele mesmo era meio selvagem. Andava descalço mata adentro como quem corria pelos corredores de seu próprio palácio. Não tinha medo de cobra, lobisomem e nem dos espíritos das florestas, de quem as pessoas comuns não queriam nem ouvir falar. Era amigo de todo mundo, boa praça, prestativo e gentil. Mas quem se metesse com ele descobria um leão enrustido por baixo daquela cara marota no topo do corpo franzino.

Foi por isso que um dia voltou pra casa com uma raposinha no colo. Todo mundo disse que raposa não é bicho pra ter no quintal. Raposa é escorpião com pelo, diziam. Mas o menino não se fazia de rogado. Estava acostumado a tratar com bichos selvagens. A raposinha por sua vez, se mostrava cada vez mais especial. Encarava todo mundo com um ar de superioridade e não se intimidava com os que viviam fazendo provocações para que ela se revelasse malévola e desse razão a quem dizia com desdém “você não me engana”. Era o oposto do menino. Metia medo à distância, mas quem se metia com ela via logo que não era aquele bicho papão, era apenas uma raposinha precisando de colo e fazendo pose para se defender.

Um dia o menino acordou com o braço dilacerado e ensangüentado, e tudo o que conseguiu ver antes de cair pra trás urrando de dor foi o rabo da raposinha saindo do quarto em penumbra. “Você me mordeu, você me mordeu”, chegou aos berros no quintal... A raposinha, sem entender o que estava acontecendo, olhava para o menino com ar de espanto e inocência. Recebia de volta um olhar que misturava decepção, ódio e revolta. Aquele olhar próprio dos que tiveram seu amor traído.

“Você não está vendo meu braço dilacerado pela sua bocarra?”, perguntava o menino pingando sangue. “Não estou vendo nada”, respondia a raposinha estarrecida. Num a fração de tempo ficaram naquela discussão onde a realidade se misturava com a imaginação e cada vez que o menino acusava a raposinha, mais a raposinha se indignava e se defendia com veemência e agressividade, fazendo o ódio do menino crescer. “Como você pôde fazer este mal tão grande contra mim?”... “Como você pode acreditar que eu faria isso com você?”, eram as expressões que se repetiam com palavras e frases cada vez mais sofisticadas. Até que num momento a raposinha diz “Você sonhou, você sonhou...”, achando que isso resolveria o dilema. “Sonho na sangra”, disse o menino inconformado. E assim, cada um foi para um lado, o menino e a raposinha, viver sua infelicidade e sua dor, cheios da razão que somente os bichos selvagens sabem ter.

Viveram assim por um longo tempo. O menino perdeu o gosto de correr pelas florestas e já nem conseguia ouvir direito a música do vento nas matas. A raposinha seguiu seu destino enfrentando tudo e todos, fazendo o possível e o impossível para sobreviver à pecha de escorpião com pelo.

Mas o menino era especial. Um dia, ouviu o Grande Espírito perguntar o que lhe valia mais, a certeza de ser traído ou o amor da raposinha, a exigência de reparo da ferida aberta ou a alegria da comunhão da raposinha, o braço ou a raposinha. Caiu envergonhada por ter sido aprisionado pelo ódio e o ressentimento, ele que sempre fora capaz de ser amigo dos selvagens, de repente se viu presa do mais selvagem dos bichos, seu próprio coração.

Enquanto isso, o Grande Espírito falava também com a raposinha. “Você acredita mesmo que ele sonhou? Então sabe que ninguém sonha sem razão. Na vida, não existe diferença entre dor de sonho e dor de verdade. O que lhe importa mais, fazer valer sua razão ou voltar à comunhão, provar inocência ou celebrar o amor?”. A raposinha abaixou a cabeça envergonhada, admitindo que não era uma raposinha, mas um bicho selvagem que devia se deixar amansar na humildade própria de quem foi alvo de amor sem reservas.

Foi então que um dia se viu a raposinha fazendo um curativo no braço do menino. A raposinha enfaixava um braço que acreditava são, cuidando zelar do coração do menino. O menino olhava com carinho a raposinha diligente, oferecendo um braço que doía bastante, mas com um coração tão saudável como jamais experimentara.

3.11.06

A peça ininterrupta

A SENHORA PUXOU PARA O LADO A CORTINA NEGRA DA JANELA DE SEU COCHE E PERGUNTOU:
– Por que não vai mais rápido? Você sabe muito bem o que significa para mim chegar a tempo na festa!
O cocheiro perneta inclinou-se na boléia na direção dela e respondeu:– Entramos num comboio, madame. Também não sei como. Só cochilei um pouquinho. De qualquer modo, apareceram de repente essas pessoas que estão obstruindo a estrada.
A senhora saiu da janela e recostou-se. De fato, a estrada estava cheia de uma caravana de pessoas. Eram crianças e velhos, homens e mulheres, todos trajando roupas de saltimbancos de um desbotado multicolorido e aventureiro, chapéus fantásticos na cabeça, enormes pacotes nas costas. Muitos cavalgavam em muares, outros em cães enormes ou avestruzes. No meio, iam carros de duas rodas, cheios até em cima de caixas e malas, ou charretes com toldo onde viajavam famílias.– Quem são vocês? – perguntou a senhora a um jovem com roupa de arlequim que passava ao lado de seu coche. Ele trazia sobre o ombro uma vara, cuja outra extremidade era carregada por uma moça de olhos amendoados e vestes chinesas. Na vara estavam pendurados vários utensílios domésticos, e no ombro dela um macaquinho com frio. – Vocês são de um circo?
– Não sabemos o que somos – disse o jovem. – Nós não somos um circo.– De onde vocês estão vindo? – quis saber a senhora.
– Da montanha do céu – replicou o jovem, – mas isso já faz muito tempo.
– E o que vocês faziam lá?
– Isso foi antes de eu ter vindo ao mundo. Nasci no meio do caminho.
Nesse momento intrometeu-se na conversa um velho que trazia nas costas um enorme alaúde ou baixo.
– Ali nós encenamos a Peça Ininterrupta, bela senhora. Esse garoto não podia saber. Era uma peça para o sol, para a lua e as estrelas. Cada um de nós posicionava-se num cume e gritávamos as palavras uns para os outros. Ela era encenada sem cessar, pois essa peça conservava o mundo unido. Mas agora a maioria de nós já esqueceu isso. Já faz muito tempo.
– Por que vocês pararam de encenar?
– Houve uma tremenda desgraça, bela senhora. Um dia nós notamos que nos faltava uma palavra. Ninguém a havia roubado, nós tampouco a esqueceramos. Ela simplesmente não estava lá. Mas sem essa palavra nós não podíamos continuar encenando, porque nada mais fazia qualquer sentido. Ela era a palavra através da qual tudo se relacionava com tudo. Compreende, bela senhora? Desde então estamos viajando para tentar reecontrá-la.
– A palavra através da qual tudo se relaciona com tudo? – perguntou a senhora espantada.
– Sim – disse o velho acenando sério, – na certa a senhora também já deve ter notado, bela senhora, que o mundo é composto somente de fragmentos, dos quais nenhum tem nada mais a ver com outro. Ele tem sido assim desde que perdemos a palavra. E o pior de tudo é que os fragmentos continuam a se partir, restando cada vez menos partes que se relacionem com as outras. Se não encontrarmos a palavra que relacione tudo com tudo, o mundo vai acabar um dia se pulverizando por completo. É por isso que estamos viajando para procurá-la.
– Vocês acreditam que um dia vão achá-la?
O velho não respondeu, ele acelerou o passo e ultrapassou o coche. A moça dos olhos de amêndoas, que nesse momento caminhava ao lado da janela da senhora, explicou timidamente:– No longo caminho que percorremos, estamos escrevendo a palavra na superfície da Terra. Por isso não ficamos em parte alguma.
– Ah – disse a senhora, – então vocês também sabem para onde devem ir?
– Não, nós nos deixamos levar.
– E quem ou o quê conduz vocês?
– A palavra – respondeu a moça sorrindo, como que querendo pedir desculpas.
A senhora olhou a moça de soslaio durante um longo tempo, depois perguntou em voz baixa:
– Posso ir com vocês?
A moça ficou calada e riu e, lentamente e seguindo o rapaz à sua frente, ultrapassou o coche.
– Pare! – gritou a senhora para seu cocheiro. Este freou os cavalos, virou-se para trás e perguntou:
– A senhora quer realmente ir com esses aí, madame?
A senhora ficou sentada, muda e empertigada no coxim, olhando fixamente para a frente. Pouco a pouco todo o resto da tropa passou pelo coche parado. Quando o último retardatário passou, a senhora levantou e seguiu o comboio com a vista, até que ele desapareceu na distância. Começou a chover um pouco.
– Vamos voltar! – gritou ela para seu cocheiro, enquanto tornava a entrar no carro. – Vamos viajar de volta. Tomei outra decisão.
– Graças a Deus – disse o perneta, – eu já estava pensando que a senhora queria mesmo ir com eles.
– Não – respondeu a senhora perdida em seus pensamentos. – Eu não seria útil para eles. Mas eu e você podemos testemunhar que eles existem e que nós os vimos.
O cocheiro deu a volta nos cavalos.
– Posso perguntar uma coisa, madame?
– O que você quer?
– A madame acredita que eles encontrem essa palavra um dia?
– Se a encontrarem – respondeu a senhora, – então o mundo deverá transformar-se de uma hora para a outra. Você não acha? Talvez um dia sejamos testemunhas dessa transformação. E agora, vamos embora!

Michael Ende (autor de A História Sem Fim)em seu romance surreal O Espelho no Espelho.

[ Do imperdível Blog do meu amigo Paulo Brabo: http://www.baciadasalmas.com ]

2.11.06

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça

Nossa maioridade nos conduz a um verdadeiro reconhecimento de nossa situação diante de Deus. Deus quer que saibamos que devemos viver como quem administra sua vida sem ele. O Deus que está conosco é aquele que deserta de nós. O Deus que nos permite viver no mundo sem a hipótese funcional de Deus é aquele diante do qual permanecemos continuamente. Diante de Deus e com Deus, vivemos sem ele. [...] Deus é fraco e sem poder neste mundo, e essa é a precisamente a maneira, a única maneira pela qual ele está conosco para nos ajudar.

[Dietrich Bonhoeffer]


Ed René Kivitz
Pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo), autor e conferencista.
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Os artigos reunidos neste livro não são expressões de rebeldia à ortodoxia cristã, mas de inquietude diante de uma Igreja que...
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  • BOSCH, David. Missão transformadora: mudanças de paradigmas na teologia da missão. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002.

  • XI Semana de Estudos de Religião - Fundamentalismos: discursos e práticas

    PRELETORES: Diversos
    DATA: 2 a 4 de outubro
    LOCAL: São Paulo (SP)
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  • "A missão é o sim de Deus ao mundo; a participação na existência de Deus no mundo. Em nossa época, o sim de Deus ao mundo revela-se, em grande medida, no engajamento missionário da igreja no tocante às realidades de injustiça, opressão, pobreza, discriminação e violência."
    David Bosch
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